É preciso extinguir o Grupo de Intervenção Rápida ( G.I.R ) do sistema Prisional Paulista


É preciso extinguir o Grupo de Intervenção Rápida ( G.I.R ) do sistema Prisional Paulista


Tivemos dois curtos períodos democráticos na história do Brasil. O primeiro, de 1945 a 1964, interrompido por uma nefasta ditadura militar. A redemocratização, com início em 1985 culminou na atual Constituição da República de 1988, regime democrático novamente golpeado numa triste e recente ruptura constitucional. Tais fatos nos mostra que a democracia brasileira vive e sobrevive em constante ameaça. Precisa ser implementada, fortalecida, expandida. Jamais desprezada, enfraquecida, apequenada ou golpeada.
Não é de hoje que inúmeras têm sido as decisões políticas no melhor interesse de grupos sociais minoritários que nos fazem questionar se de fato vivenciamos a democracia. A Constituição Federal de 88 em seu artigo 1º nos adverte: vivemos em República que se constitui em Estado Democrático de Direito. Estaríamos num impasse: se, de fato, não estamos na ditadura, é certo que a democracia ainda não foi experimentada, não foi efetivada em sua plenitude. Vivemos numa espécie de pseudodemocracia ou arremedo democrático.
Em sua incompletude, o Estado de Direito não ultrapassa as barreiras do cárcere, onde a prisão invariavelmente desencadeia uma série de violações e supressões de direitos humanos que ferem de morte a dignidade humana, um dos fundamentos da República.
O Brasil ainda se apresenta como constante violador de direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição de 88, especialmente no que concerne ao tratamento destinado às pessoas privadas de liberdade, num sistemático desrespeito e inobservância das normas previstas na Lei de Execução Penal (Lei Federal nº 7.210/84) e demais diplomas legais em prejuízo dos acusados ou condenados.
Se a própria Constituição Federal Brasileira não é observada e implementada em nosso sistema prisional, tampouco o são as normas supraconstitucionais ou normas de direito internacional, a exemplo das Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos – criadas em meados do século passado e incorporadas no direito brasileiro – recentemente atualizadas e apelidadas de Regras de Mandela e que continuam passando ao largo do sistema prisional. Ademais, vale lembrar que o Brasil, país-membro e um dos fundadores da ONU vem, ao longo dos anos, ratificando importantes instrumentos e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dentre os quais a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1989.
O que dirá então as Regras de Bangkok criadas em 2010, as quais ainda permanecem desconhecidas ou ignoradas por parte de profissionais do direito, sobretudo numa cultura perversamente machista e punitivista como a existente na sociedade brasileira. Isto porque as Regras de Bangkok (aclaradoras e complementares às Regras de Mandela) fazem um indispensável recorte de gênero na questão do encarceramento feminino, fenômeno que lamentavelmente tem aumentado de forma significativa no Brasil nas últimas décadas.
O desinteresse político na efetivação de direitos e garantias é flagrante, a exemplo do estado de São Paulo, onde o Legislativo permanece omisso na questão da efetiva implantação das Regras de Mandela (e de Bangkok), mesmo com expressa previsão na Constituição Estadual que determina: “Art. 143. A legislação penitenciária estadual assegurará o respeito às regras mínimas da Organização das Nações Unidas para o tratamento de recluso .
Não se olvida que o tratamento inconstitucional e ilegal comumente dispensado à população carcerária advém do descaso político não apenas do Legislativo quando se omite na elaboração de leis garantistas (e, via de regra, aposta na elaboração de leis punitivas), ou do Executivo ao não optar por políticas públicas (até mesmo na realização de direitos humanos já consagrados), mas também do próprio Judiciário em que parte expressiva de seus atores(1) são demasiadamente apáticos à realidade, meros tecnocratas, quando não, alienados em prejuízo da efetiva concretização dos direitos humanos mais basilares, sobretudo no cárcere.
Contudo, o presente artigo pretende se circunscrever ao papel do Legislativo e Executivo no sistema carcerário, especialmente dentro do estado de São Paulo, sobre o qual pretende jogar luz nas ações do grupo especializado de agentes penitenciários, o chamado G.I.R. (Grupo de Intervenção Rápida) que, a despeito deste contexto jurídico-normativo de proteção aos direitos humanos, desenvolveu-se no início da atual década dentro do cárcere paulista de modo um tanto natural, isto é, sem alarde e sem oposição das instituições democráticas. Conforme trataremos adiante, o GIR não tem embasamento legal, tampouco constitucional e sequer encontra correspondência no rol taxativo do artigo 144 da CF/88 que trata da segurança pública, contrariando também dispositivos de Convenções e Tratados Internacionais incorporados ao sistema jurídico brasileiro.
A Assembleia Legislativa do Estado de SP vem descumprindo o seu próprio mandamento constitucional acerca da criação de mecanismos para que as Regras Mínimas da ONU no tratamento de presos (e de presas – interpretação extensiva) sejam respeitadas, garantidas.
o governo do Estado de São Paulo, por meio da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) resolveu, deliberadamente, preencher tais “lacunas” – como se lhe fosse permitido – de modo arbitrário e ilegal ao editar resoluções que possibilitam, direta ou indiretamente, a violação às Regras da ONU e estabelecem normas em total dissonância com o ordenamento jurídico. Aqui abre-se um parênteses para a citação de dois exemplos:
01-  a Resolução SAP nº 69/2004 que instituiu o GIR, grupo de segurança penitenciária que tem suas ações pautadas pelo uso escalonado da força (contrariando literalmente o estabelecido nas Regras de Mandela – regra 82.1 – na qual o uso da força é medida de exceção). Além de que o emprego da palavra “escalonado” é incabível porque remete à ideia de ilimitado, infinito e exatamente por isso flerta com práticas criminosas, extremamente autoritárias e repulsivas como o caso da tortura e outras formas de tratamento desumano, cruel ou degradante.
02 - a Resolução SAP nº 144/10 que criou faltas disciplinares de natureza leve e de natureza média aos encarcerados, violando assim o princípio da legalidade (compete à legislação estadual a previsão das faltas disciplinares médias, leves e respectivas sanções), além de que direito penitenciário é matéria de competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal.(2) É inadmissível que simples regimento interno criado pela SAP rasgue a Lei de Execução Penal e passe por cima de dispositivos constitucionais. Retomaremos o assunto mais adiante.
Tais exemplos dão certa medida de como o Legislativo e o Executivo tratam a questão carcerária, numa aparente negligência que nada mais é do que opção de política pública, num verdadeiro assentimento de interesses ou vontades escusas entre os Poderes do Estado pois, mesmo havendo todo um regramento jurídico de direitos humanos basilares à população carcerária, as piores escolhas são tomadas, seja na omissão, seja na produção de mecanismos anulatórios desses mesmos direitos pelo próprio Estado como o caso da criação do GIR.
Por primeiro, é preciso que se compreenda que o cárcere não pode ser utilizado como local de vingança pessoal pelas chagas sociais, como um catalisador de agentes penitenciários sádicos, terra sem lei e regida por regras próprias. No atual momento civilizatório deveria ser um escândalo a prática de tortura e de tratamento desumano para todo e qualquer indivíduo. Além do servidor infrator, o sistema prisional é agente facilitador para a atuação ilegal e criminosa desses agentes penitenciários porque chancela o uso desmedido da força na imposição de “ordem e disciplina”, de sanções indevidas sem apuração das eventuais faltas cometidas, sem direito de defesa, sem treinamento adequado, sem fiscalização e responsabilização de seus agentes.
E é exatamente nesse contexto de violações de direitos que se insere o GIR no sistema prisional paulista, com início de operação no ano de 2002 no CDP de Sorocaba, expandindo-se posteriormente nas penitenciárias e demais Centros de Detenção Provisória (CDP´s) do estado. O GIR é uma tropa de segurança que muito se assemelha à uma força policial interna corporis da SAP, isto é, um grupo de agentes de segurança penitenciária com atuação exclusiva nas unidades prisionais, também conhecido por “mini tropa de choque” ou “choquinho”, em clara referência à Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
A ideia de criação do GIR surgiu em 2001 e segundo um de seus idealizadores, o advogado Márcio Coutinho, à época diretor do CDP de Sorocaba, se deu em virtude da “necessidade de acompanhar as mudanças nos perfis dos presos, que estavam mais audaciosos e problemáticos”. Outra justificativa apontada foi o demasiado tempo de resposta da Tropa de Choque da PM, que se sujeitava a comando diverso da SAP, bem como a necessidade de “pronta resposta em situações de risco ou início de rebeliões”. Agentes do GIR passaram a receber treinamento militarizado, armamentos e munições não letais.
Evidente que é esperado e desejável agentes penitenciários capacitados para atuarem em situações de risco ou gravidade a fim de resguardar e proteger a integridade física e/ou a vida de todos os envolvidos. Todavia, as ações por eles executadas jamais podem se divorciar dos postulados da dignidade humana e demais sistema jurídico. E isto não acontece com um treinamento militarizado que tem a ótica exclusiva de repressão e combate ao inimigo, em absoluto desprezo e ignorância das normas legais e supralegais de direitos humanos.
Dois anos de atuação do GIR na total obscuridade, a SAP publicou a Resolução nº 69/2004 que oficializou as operações do grupo e enumerou possibilidades de ação dos agentes, tais como revistas em celas, remoção interna de presos, combate a início de revoltas e tentativas de fuga (previu-se o uso escalonado da força em toda e qualquer hipótese). Após cinco anos, nova Resolução foi criada (Resolução SAP nº 155/2009), em reedição da anterior, e deu origem a CIR (Célula de Intervenção Rápida) – um desdobramento do GIR que atua com o mesmo modus operandi, com a diferença que a Célula possui número menor de integrantes que o Grupo.
Apesar do formalismo capenga, o GIR (e a CIR) continua nas sombras, porém bastante atuante no interior do sistema prisional paulista. Nos últimos anos, vem ganhando espaço no território nacional numa escalada repressiva, tendo-se notícia de similar implantação em outros estados da Federação, como por exemplo no estado de Minas Gerais (criado em 2012, Resolução SEDS-1266) e Mato Grosso do Sul (GIRVE – em fase de implementação).
O GIR é modelo de segurança ilegal e inconstitucional, que entra em ação no cárcere paulista nas variadas situações do cotidiano (mesmo na ausência de rebelião ou de risco efetivo) mediante ordem da direção do estabelecimento, em contínua violência estatal. A criação do GIR abriu uma brecha, imperceptível extramuros, para violações de direitos humanos. Agentes penitenciários atuam como a Tropa de Choque do cárcere (ou pior devido à invisibilidade de ações, urgentes ou não, necessárias ou não) a qualquer hora do dia ou da noite, sob qualquer pretexto, no tratamento de presos e presas sem observância ao regramento jurídico.
Sequer houve base legal para o GIR, instituído por ato administrativo e em ofensa a dispositivos legais, sem fundamento jurídico válido de existência. Como se sabe, resolução não é lei. A matéria aqui tratada é de ato vinculado a lei, inexistindo espaço para discricionariedade da SAP ou Poder Público. Difícil seria sustentar a legalidade ou legitimidade do GIR vez que não guarda correspondência alguma com a legislação brasileira do ponto de vista formal e material, atuando à margem da lei.
A par do crescimento exponencial da população carcerária nas duas últimas décadas e da necessidade do Estado em conter rebeliões, o GIR entrou em cena no sistema prisional sem qualquer parâmetro legal em notório recrudescimento da opressão estatal em face dos encarcerados. Em outras palavras, o GIR é a institucionalização da tortura, dos maus-tratos e do tratamento cruel, desumano e degradante pelo estado de São Paulo contra presos e presas.
E com isto não se está a afirmar que o GIR é o único responsável pela violência no sistema prisional paulista, como se fosse ele a raiz do problema. Evidente que não. Numa abordagem Foucaultiana discute-se há muito a estreita relação entre prisão e violência e é neste sentido que a violência institucional do cárcere precede ao GIR, mas é indubitável que este modelo de segurança penitenciária contribui significativamente com este terrível cenário ao fomentar violências e agravar sobremaneira violações de direitos humanos para todos os lados.
De fato, segundo a pesquisadora e socióloga Camila Nunes Dias , houve um aumento vertiginoso de rebeliões, ano a ano, nas unidades prisionais paulistas, o que culminou na megarrebelião do ano de 2001, tudo em virtude do processo de expansão do PCC no interior do sistema carcerário com início no ano de 1994. Curioso notar que o surgimento do PCC, nas palavras da ilustre socióloga, teria ocorrido em virtude “dos escombros do descaso, das arbitrariedades e da violência institucional que sempre estiveram presentes nas prisões brasileiras”.
Segundo Camila Dias, em virtude da publicização do PCC por conta da megarrebelião de 2001, dois foram os efeitos imediatos ocorridos: o fortalecimento da organização que impulsionou a sua disseminação mais rapidamente dentro do sistema carcerário e o desencadeamento de resposta repressiva do Estado – já que publicamente desmoralizado – com a criação do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Assim, conclui que “o ano de 2001 foi um divisor de águas para as políticas na área de segurança pública no estado”.
Ante tais fatos podemos constatar que, não por acaso, o GIR também surgiu exatamente nesse mesmo período no sistema prisional paulista, entre 2001 e 2002, e revelou-se como uma forma de controle eminentemente violento da população carcerária. Apesar do GIR não se tratar de regime disciplinar propriamente dito como o RDD, também impõe uma disciplina terrorista e desumana aos encarcerados.
A invisibilidade das ações do GIR, que ocorrem à margem da lei e sem qualquer tipo de controle fiscalizatório de seus agentes, propicia um controle tirânico da população carcerária num círculo vicioso de constantes ofensas aos direitos humanos, mantendo-se afastada a dignidade humana aos encarcerados. O GIR tornou-se um componente estratégico para a transgressão do sistema jurídico protetivo de direitos humanos, a pretexto do estabelecimento da disciplina e da ordem.
Essa barbárie vez ou outra é noticiada na mídia tradicional e, deixando de lado as interpretações levianas típicas desses canais (claro, sem ignorar que são denúncias sujeitas ao processo legal), constatamos denúncias gravíssimas contra agentes do GIR. Como exemplo :
 Vemos denúncias de crimes de tortura e lesão corporal praticados contra 111 presos durante revista de rotina no CDP de Taubaté e contra 74 detentos na Penitenciária II de Potim, em 2014. Note-se que a violência teria ocorrido durante simples procedimento de rotina.
Outros casos noticiados teriam ocorrido no início de 2016, no presídio de Uberlândia (MG), como o crime de lesão corporal mediante explosão de granadas, abuso de autoridade e crime de tortura contra os presos, dessa vez em nome da disciplina. Mais recentemente, esta outra denúncia num CDP da capital de SP, onde agentes do GIR teriam torturado mais de 30 presos (provisórios) e feito disparos de balas de borracha, bombas de gás, uso de spray de pimenta, cassetetes e cães enfim, todo o arsenal disponível de uso cotidiano do GIR, para agredir e impingir o terror, além de tratamento desumano, cruel, degradante e aplicação de sanções ilegais (punições coletivas) aos encarcerados.
Segue trecho da reportagem:
“Tiveram suspensos os direitos aos banhos de sol, visitas de advogados, parentes, entradas de jumbos (alimentos levados pelos familiares) e entregas de cartas e remédios controlados. Também relataram ter as roupas rasgadas e objetos pessoais levados, sendo obrigados a ficarem nus ou de cuecas, trancafiados em celas superlotadas, sem colchões e energia elétrica”.
Um olhar mais atento nos mostrará que não se tratam de casos isolados. Note-se que nenhuma dessas violências tiveram origem em rebelião (o que em tese “legitimaria” a intervenção do grupo especializado, mas nunca suas ações criminosas). Mesmo em hipótese de rebelião, evidente que o uso excessivo da força pelos agentes deve sujeitar-se à punição, bem como toda a sorte de crimes praticados devem ser apurados e aplicadas as responsabilizações legais.
Ora se agride ou se tortura para impor disciplina (que comumente é imposição de uma ordem ilegal), ora para pôr fim à qualquer discussão como quantidade de comida, conforme última reportagem. Trata-se de situação abominável que não se deve mais tolerar em pleno século XXI, num Estado de Direito. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela ONU em 1948 e ratificada pelo Brasil na mesma data já estava vedada a prática de submissão à tortura, bem como a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
No mesmo sentido, as Regras da ONU preveem que, em nenhuma hipótese, devem as sanções disciplinares implicar em tortura ou outra forma de tratamento ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e proíbe castigos corporais, redução da dieta ou água potável do preso, castigos coletivos, instrumentos de imobilização e proibição de contato com a família como sanções a infrações disciplinares, confinamento solitário prolongado e/ou indefinido, dentre outros.
O próprio Código Penal reforçou expressamente os direitos do preso, onde se lê:
“O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” (artigo 38).
Como não poderia ser diferente, a Constituição Federal de 1988 recepcionou todo esse arcabouço legislativo condensando tais princípios e dispositivos legais e assegurou o respeito à integridade física e moral dos presos, além do repúdio à prática do crime de tortura (comando reforçado pela Lei Federal nº 9.455/97).
A Lei de Execução Penal também previu uma série de direitos do preso e regras de disciplina, tendo vedado expressamente as sanções coletivas (arts. 3º e 45). Conforme explica Mirabete [4], a pretensão era abolir:
“O arbítrio existente na aplicação do sistema disciplinar com a introdução de disposições precisas quanto às faltas e às sanções correspondentes no lugar de uma regulamentação vaga e quase sempre arbitrária.”
Porém, tal afirmativa ainda não se efetivou na medida em que agentes penitenciários usam da mais pura arbitrariedade e tirania, amparados em meras resoluções que impõem disciplinas e prevê o uso desmedido da força.
Se as faltas disciplinares levam a sanções (limitativas dos direitos do preso ou condenado), ambas devem estar previstas na lei e não em regulamentos, justamente o contrário do que fez o governo do Estado de SP que, na ausência de lei estadual, criou faltas disciplinares (além daquelas já previstas na Lei de Execução Penal) por meio da Resolução SAP nº 144/2010 que instituiu o regimento interno dos presídios.
Isto significa que as faltas disciplinares de natureza média e de natureza leve ocasionalmente atribuídas aos encarcerados sob custódia do estado não possuem validade jurídica, tratando-se de manifesta ordem ilegal que portanto não devem ser seguidas e tampouco passíveis de sanção. A Lei de Execução Penal também prevê o exercício do direito de defesa da pessoa presa acusada do cometimento de falta disciplinar, com decisão motivada, devendo ser aberto um procedimento interno para a sua apuração – direito que nunca se teve notícia.
O resultado prático acerca dessa política ditatorial e fascista é chocante: chama-se o GIR para “disciplinar” e por ordem na unidade prisional, onde o acontecimento mais trivial fatalmente será rotulado como um ato de indisciplina passível de sanções e castigos.
A mesma prática criminosa também é dirigida às mulheres encarceradas conforme se constata em relatório de visita da Penitenciária Feminina de Santana elaborado por Equipe do MNPCT [5]. Assim como nas prisões masculinas, aqui se traz apenas um exemplo do que é regra no sistema prisional paulista (e quiçá brasileiro): submissão das pessoas privadas de liberdade a sessões constantes de humilhação, agressão e tortura. Segundo o relatório, em reprimenda a uma festa comemorativa de aniversário do PCC houve ação imediata do GIR, que adentrou nas dependências da penitenciária feminina e passou a desferir socos, pontapés e ofensas verbais às mulheres.
Também há relatos de ameaças de morte, presas arrastadas pelos cabelos, presas forçadas a levantarem as blusas sob pena de golpes com cassetetes, agressões, atiçamento de cães para atacarem as presas, imobilização das presas sob a mira de cães, quebra de pertences das presas e lançamento de bombas de gás lacrimogêneo. E segue o relato: durante toda a ação do GIR, presas ficaram sem acesso a água e sem alimentação. Durante o procedimento de revista, presas tiveram sua alimentação estragada pelos agentes do GIR, os quais contaminaram os alimentos com água sanitária e sabão.
As mulheres encarceradas relatam ainda que nem todas teriam participado da festa, e segundo elas, isto explicaria a injustiça dessas ações. Constatou-se que houve punição coletiva imediata e severa, sem a instauração de procedimento interno no que se refere às devidas apurações legais. Após tais ocorrências também foi imposta a proibição dos contatos e visitas familiares às mulheres encarceradas. Também restou evidenciado que nenhum agente do GIR possuía identificação nos uniformes.
Apesar de tanta ilegalidade e descalabro, tramita no Estado de São Paulo um projeto de lei (PL nº 897/2014) de autoria da deputada estadual Telma de Souza (PT-SP) que prevê regras a serem seguidas quando da ação dos agentes do GIR (e/ou CIR) perante qualquer unidade prisional do Estado (mas não estabelece quais seriam as hipóteses de atuação do grupo). Tal projeto determina a prévia comunicação da intervenção do GIR às autoridades competentes, a obrigatoriedade de registro de audiovisual das operações de intervenção, a confecção de relatório e envio do material colhido às autoridades, bem como a imediata responsabilização penal e administrativa dos agentes públicos infratores.
Sabe-se que a transparência das instituições públicas – e aqui se incluem as unidades prisionais – é princípio constitucionalmente assegurado e medidas como as previstas no referido PL são valiosas para se coibir desvios ou abusos individuais já que atualmente não se faz nenhum tipo de controle das ações do GIR, daí porque tamanha selvageria.
Parece-nos que a permanência do GIR nas prisões só deve continuar se medidas como estas forem urgentemente adotadas, possibilitando uma completa remodelação ou reestruturação do GIR a fim de que se submeta à lei e ao sistema jurídico protetivo de direitos humanos. Assim, para além do que dispõe o PL 897/2014, é fundamental o estabelecimento de hipóteses legais taxativas para ação do GIR cuja inobservância evidenciaria desvio de finalidade.
A saída parece simples: ou se promovem mudanças substanciais no GIR de modo a adequá-lo ou submetê-lo definitivamente ao Estado de Direito ou o GIR deve ser imediatamente abolido das unidades prisionais. Se tudo permanecer como está não haverá a mínima possibilidade concreta de fiscalização e atribuição de responsabilidades legais aos agentes penitenciários e a população carcerária continuará a ser barbaramente violentada. Instituições compromissadas com a democracia precisam agir de modo a romper esse ciclo vicioso de violência e morte.
A previsão de mediação, prevenção ou qualquer outro mecanismo alternativo ao uso da força na solução de conflitos é regra que precisa ser colocada em prática sempre que possível nas unidades prisionais, seja pelo GIR após sua necessária reconfiguração, seja por outros agentes penitenciários devidamente treinados sob a ótica legal humanista. Aliás, se considerarmos que um potencial causador de rebelião é o sistemático descaso ou desrespeito aos direitos (básicos) humanos tais como o direito à alimentação sem vestígio de sabão, terra, caco de vidro etc., direito à higiene, direito aos serviços de saúde, direito à acomodação adequada, dentre outros, evidente que a observância desses mesmos direitos pelos agentes do Estado certamente seria capaz de evitar, senão extirpar, conflitos de grande magnitude prescindindo-se até mesmo de tamanho aparato repressivo como o GIR.
Apesar da primeira necessidade de se afastar agentes penitenciários infratores, como já foi realizado pontualmente pela Defensoria Pública do Estado de SP, a exemplo do ocorrido na Penitenciária 2 de Potim em 2014, tal medida não se mostra suficiente vez que não resolve a grandeza do problema por não atacá-lo pela raiz. Tampouco soluciona o afastamento do diretor do estabelecimento prisional. Tanto é assim que recentemente foi noticiado pelo Ponte Jornalismo que a Penitenciária 1, também de Potim, estava há dias sob intervenção do GIR sem que os familiares dos presos tivessem notícias e sem que advogado pudesse entrar. É preciso o enfretamento definitivo dessas questões pelas instituições democráticas e ir além para um avanço progressista.
A propósito, traçando um paralelo com a ação civil pública ajuizada em 2014 pela Defensoria Pública de SP contra o governo do estado onde se pretende a regulamentação para atuação da PM em manifestações públicas, tais como a restrição máxima ao uso de bala de borracha (uso exclusivo para afastar grave risco de morte), a total abstenção de bombas de gás lacrimogêneo em locais fechados, a identificação (e de modo visível) dos policiais, a presença de um negociador civil responsável por estabelecer uma ponte de diálogo entre manifestantes e policiais, é perfeitamente defensável que o Estado também seja instado a se manifestar acerca da atual situação do GIR nas prisões paulistas, com vistas a sua extinção ou ao menos uma reformulação.
É absolutamente inconcebível a atuação do GIR ou de qualquer agente penitenciário que se utiliza da força como regra, de forma desmedida e indiscriminada, em semelhante procedimento da tropa de choque da PM nas manifestações de rua, com o uso de cassetetes, balas de borracha, bombas de gás, sobretudo em local fechado como o do cárcere.
Esse modelo que temos hoje nas prisões paulistas (e noutros estados) é absolutamente ignóbil num pretenso Estado de Direito, no qual agentes do GIR permanecem camuflados no grupo sem que haja qualquer responsabilização, seja por impossibilidade de identificação do agente infrator (agentes que atuam encapuzados e sem identificação), seja por ausência de controle e fiscalização, seja por acobertamento criminoso da direção da unidade prisional.
Garantir a aplicação das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos como reforça a própria Constituição do Estado de SP, a efetiva implantação das Regras de Bangkok, bem como as demais Convenções e Tratados Internacionais correlatos (princípio da prevalência da norma mais benéfica e protetiva aos direitos humanos) e extinguir o GIR ou reformá-lo completamente a fim de que se enquadre no sistema jurídico vigente possibilitando-se o desenvolvimento de mecanismos eficazes de garantia de direitos, controle, fiscalização e responsabilização legal de agentes penitenciários infratores certamente seriam importantíssimos passos rumo à efetivação da dignidade da pessoa humana encarcerada, freando-se o terrível processo de desumanização no cárcere.