Relator: O Excelentíssimo Senhor
Ministro Edson Vidigal
Recorrente: Robertto Lemos e
Correia
Recorrido: Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia
Paciente: J. M. V.
Penal. Processual. Tentativa de
homicídio. Pronúncia. Súmula n. 21-STJ. Excesso de prazo no julgamento.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Concessão ex officio.
Habeas Corpus. Recurso.
1. A Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, adotada no Brasil através do Decreto n. 678/92, consigna a idéia de que
toda pessoa detida ou retida tem o direito de ser julgada dentro de um prazo
razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o
processo.
2. A jurisprudência tem sido rigorosa
no que diz respeito ao excesso de prazo na instrução criminal, ficando, porém,
inerte no que pertine ao próprio julgamento.
3. Considerando que o paciente aguarda
seu julgamento, preso e sem data marcada, há pelo menos 1 (um) ano da data da
pronúncia, configurado está o constrangimento ilegal ao seu direito de ir e
vir.
4. Recurso improvido. Concessão da
ordem ex officio.
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes
autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na
conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade,
negar provimento ao recurso e conceder a ordem ex officio, nos termos do
voto do Ministro Relator. Votaram com o Relator os Ministros José Dantas e Cid
Flaquer Scartezzini. Ausente, justificadamente, o Ministro Assis
Toledo.
Brasilia-DF, 7 de maio de 1996 (data do
julgamento)
Ministro Edson Vidigal, Relator e
Presidente (em exercício)
Relatório
O Excelentíssimo Senhor Ministro Edson
Vidigal: Já se passaram dois (2) anos, feitos no mês passado, que J. M. V., 20
(vinte) anos, lavrador, festejando seu aniversário na Boite Tatu, povoado Nova
Esperança, em Várzea do Poço, Bahia, desentendeu-se com C. A. S., 15 (quinze)
anos, sua namorada.
Bêbados os dois e ele, além disso,
muito apaixonado porque ela ameaçou romper o romance, discutiram, se atracaram,
resultado ele acabou riscando-a com a ponta de uma faca conhecida como "sete
tostões", muito usada para descascar laranja.
O laudo do exame de corpo delito
registrou ferimento cicatrizado e parestesia, ou seja, formigamento no ombro
esquerdo.
Mas J. V. teve prisão preventiva
decretada, foi denunciado por homicídio (CP, art. 121, § 2º, III (meio cruel)
c/c o art. 14, II) e está preso até hoje, desde 30 de julho de 1994, na Cadeia
Pública, em condições, segundo a impetração, desumanas:
"É sabido por todos de Várzea do Poço
que a Prefeitura não fornece alimentação aos presos com regularidade e, assim, o
Paciente tem literalmente passado fome.
E de fome só não morreu porque a
caridade e a solidariedade daquela população não lhe nega um diário prato de
comida. O local de custódia é fétido, escuro e sem arejamento. Lembra bem as
celas medievais contra as quais o Marquês de Beccaria se insurgira. E o homem
está lá como um rato, esquecido pela crueza dos sentimentos da
sociedade."
A alegação de excesso de prazo foi
superada pela sentença de pronúncia proferida pela Juíza, segundo informação de
23 de agosto de 1995, após a impetração do habeas corpus em 31 de julho
do mesmo ano. E por isso, o Tribunal de Justiça da Bahia denegou a
ordem.
Neste Recurso o impetrante lembra que o
Ministério Público estadual opinou pelo deferimento da ordem e pede a reforma do
Acórdão, ressaltando a condição de miserável do ora paciente, sem defesa
suficiente, portanto, assistido judicialmente por cota de caridade. Conclui
assim:
"Os 435 dias que o paciente cumpriu em
prisão, sem ao menos ser condenado, totalizam tempo maior ao que estaria
obrigado a cumprir, fosse condenado nas penas do tipo em que deve ser enquadrado
o fato, de lesões corporais leves. Desconsidere-se, até mesmo o atenuante de, ao
tempo do fato ser menor de idade, de haver colaborado com a instrução criminal,
de ser primário e de ter bons antecendentes. Ainda assim, caso a Justiça tivesse
se operado com a celeridade que dela se espera, notadamente em se tratando da
liberdade da pessoa, e se tivesse condenado o Réu à pena máxima do crime de
lesões corporais leves, ele deveria estar em liberdade por haver cumprido
integralmente sua pena".
O Ministério Público Federal, nesta
instância, invocando a Súmula n. 21 desta Corte, opina pelo improvimento do
Recurso.
Relatei.
Voto
O Excelentíssimo Senhor Ministro Edson
Vidigal: Senhor Presidente, o jovem lavrador que, enciumado, brigou com a
namorada porque ela o ameaçou dizendo que não o queria mais, teve prisão
preventiva decretada, segundo o Juiz à época, "para assegurar a aplicação da Lei
Penal e por garantia da ordem pública." (CPP, art. 312).
Isto foi no dia 15 de abril de
1994.
O ora paciente, que sendo lavrador no
povoado Nova Esperança, não morava na sede do Município de Várzea do Poço, BA,
foi recolhido à Cadeia Pública no dia 30 de julho de 1994, portanto há quase
dois (2) anos.
A sentença de pronúncia, encampando a
prisão preventiva saiu em 4 de agosto de 1995, ou seja quase um ano depois;
aliás, no mês seguinte à impetração do habeas corpus por excesso de prazo
para a conclusão da instrução criminal.
Diz o impetrante que alguém avisou lá e
por isso a Juíza, substituta, acorreu com a pronúncia.
O Tribunal de Justiça do Estado da
Bahia denegou a ordem por entender, como se tem entendido, sempre, que a
sentença de pronúncia supera a alegação de excesso de prazo para a conclusão da
instrução criminal.
Onze (11) meses, quase um (1) ano,
portanto, foram necessários para se formalizar numa sentença contra o ora
paciente a acusação de homicídio tentado num caso em que os laudos periciais
proclamam ser de leves lesões corporais.
Homicídio tentado ou simples lesões
corporais – não é essa a questão que se examina, até porque o pedido originário
não cogitou disso.
O que desponta aqui é o atrito entre as
normas processuais penais aplicáveis e um bem maior – o sentimento de Justiça
que, diante do formulário técnico-procedimental, fica nanico, sem cobertura
formal para desafiar e vencer a injustiça.
O acusado destes autos está preso há
quase dois anos; só depois de mais de um ano sem liberdade, veio a saber
formalmente de que acusação tem que se defender perante o
Estado-Juiz.
("O mal da justiça humana –
protestava, irônico, Monteiro Lobato, da prisão onde foi jogado pela ditadura do
Estado Novo; o mal da justiça humana está na falta de uma lei que vou fazer
quando for ditador: todos os juízes, depois de nomeados e antes de entrar no
exercício do cargo, têm de gramar dois anos de cadeia, um de penitanciária e um
de cela, a pão e água e nu em pelo. Não há nada mais absurdo do que o poder dado
a um homem de condenar outros a uma coisa que ele não conhece: a privação da
liberdade".)1
Pouco antes de completar cem dias na
prisão já poderia ter sido solto, por excesso de prazo para a formação da culpa.
Não apareceu ninguém que, denunciando essa injustificável demora, impetrasse em
seu favor uma ordem de habeas corpus, no Tribunal de Justiça do Estado da
Bahia.
E quando apareceu, mais de um ano
depois, por aqueles rincões baianos, um advogado da Capital com essa idéia, foi
que o Estado-Juiz despertou para fazer a sentença de pronúncia, após a
impetração do habeas corpus e antes do julgamento do pedido.
A sentença de pronúncia, reza a Súmula
n. 21-STJ, afasta a alegação de excesso de prazo. Pedido inviabilizado. Nos
crimes de competência do Tribunal do Júri, o procedimento é bifásico; a primeira
fase começa com o recebimento da denúncia e termina exatamente aí, na sentença
de pronúncia, após a qual engata-se a segunda fase que só se acaba quando do
trânsito em julgado da sentença do Juiz-Presidente do Júri.
Pronunciado o Réu, não se fala mais em
excesso de prazo para a formação da culpa. Para cada momento processual há um
prazo legal; oitenta e um dias (81), por exemplo, é o prazo razoável admitido
pela jurisprudência para a conclusão de toda instrução criminal. E não se pode
falar em excesso de prazo para a realização do julgamento?
Está agora o acusado, ora paciente, há
quase dois anos na cadeia, regime fechado, sem saber quando vai ser julgado e,
nos termos do direito processual até agora entendido, numa visão limitada pela
jurisprudência cristalizada, não há excesso de prazo. A sentença de pronúncia
superou essa alegação.
Como não há excesso de prazo nessa
espera do acusado para o julgamento? Não tem ele o direito a ser julgado sem
demora pelo Estado-Juiz, no máximo dentro de um prazo razoável? Mais de um ano
na cadeia sem saber sequer quando vai ser julgado não é um excesso de prazo
configurador de constrangimento ilegal reparável por habeas
corpus?
Nosso direito processual penal ainda
ignora essa hipótese. Nossa jurisprudência, sem esconder a timidez, apenas
assiste, da arquibancada, ao desfile, na passarela das injustiças, de situações
deploráveis como esta.
O direito processual não pode ser mais
que uma listagem de ritos destinados a garantir a aplicação da lei de maneira
igual para todos; não pode ser um conjunto de entraves à pronta realização da
Justiça.
Socorre ao ideal de Justiça, em
situações como esta, o direito internacional que, para a proteção da liberdade
das pessoas nos resta invocar, ante à ausência de lei específica, para proteção
da liberdade.
A Constituição Federal vigente não
afastou e tanto a doutrina predominante no País quanto a jurisprudência
atualizada do Supremo Tribunal Federal asseguram a equivalência dos Tratados ou
Convenções a leis federais. Tratados ou Convenções só não têm essa força quando
conflitam com a Constituição; aí vale o que está escrito na
Constituição.
E o que diz a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, que nos termos do Decreto n. 678/92 está em vigor no Direito
Interno Brasileiro desde 9 de novembro de 1992?
Diz:
"Artigo 7 - Direito à liberdade
pessoal.
Omissis
5. Toda pessoa detida ou retida deve
ser conduzida, sem demora, à presença de um Juiz ou outra autoridade autorizada
pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um
prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o
processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo.
6. Toda pessoa privada da liberdade tem
direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida,
sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção ou ordene sua soltura
se a prisão ou detenção forem ilegais
(...)".
A única ressalva que o Brasil fez ao
texto desta Convenção, não se comprometendo, portanto, a cumprir diz respeito
aos artigos 43 e 48, "d", que tratam do direito automático de visitas e
inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nessas
hipóteses, o Brasil reserva-se ao direito de ser ouvido antes para, examinando
cada pedido, autorizar ou não. Apenas isso; quanto aos mais, é lei federal em
vigor no País.
Como a decisão recorrida, escorada na
Súmula n. 21-STJ, recusa a alegação de excesso de prazo apenas quanto à
conclusão da instrução criminal – e foi este fundamento legal do pedido
originário – nego provimento ao recurso.
Resta, ainda bem, um porém.
É que considerando que a privação da
liberdade por mais um ano, a título de prisão provisória, fere o direito de todo
ser humano a ser julgado por Tribunal estatal num prazo razoável, consignado na
Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, artigo 7, item 5, a qual, adotada
pelo Brasil vigora no direito interno com força de lei federal; considerando que
o ora paciente está preso há quase dois anos sem data marcada para julgamento;
entendendo que isto também é excesso de prazo configurador de constrangimento
ilegal reparável por habeas corpus, concedo o
habeas corpus ex
officio
para determinar a imediata soltura do
Réu ora paciente a fim de que aguarde o julgamento em liberdade.
É o voto.
VOTO
O Senhor Ministro José Dantas: Senhor
Presidente, a excelência de seu voto leva-me a acolhê-lo, mesmo por que terminou
em fidelidade à nossa jurisprudência. Quanto à concessão da ordem ex
officio, convenha-se ser um ato de justiça, que se completa pelas
particularidades do caso; por isso acompanho o voto de Vossa Excelência.