ONG Pacto Social & Carcerário São Paulo
ONDE ESTÁ A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ?
"ISTO É DIGNIDADE HUMANA ?"
"Enquanto
houver uma cela com 100 presos
onde caberiam quarenta, enquanto houver
pátios sujos de sangue, urina e fezes, enquanto
houver tortura e injustiças, não teremos direito
de falar em lei e direito neste país"
onde caberiam quarenta, enquanto houver
pátios sujos de sangue, urina e fezes, enquanto
houver tortura e injustiças, não teremos direito
de falar em lei e direito neste país"
O presídio,
pequeno e de um só andar, a que chamávamos "a cadeia", ficava na outra esquina,
em diagonal com a esquina de nossa casa. Acordada no escuro, às vezes a menina
que eu era escutava gritos vindos de lá. "Deviam estar batendo em algum dos
presos", me diziam de manhã. Aquilo era uma peça perdida no interessante
quebra-cabeça do mundo que eu estava descobrindo e já amava. Pois, há alguns
anos, um telefonema da diretora do presídio feminino da cidade onde resido
comunicou-me que estavam instalando uma biblioteca para as presidiárias. As
"apenadas" queriam dar meu nome ao local. Ela me consultava para saber "se eu
não me ofenderia com isso". Ao contrário, respondi, eu me sentia honrada, de
verdade.
Meses depois,
novo telefonema: a biblioteca estava pronta, queriam que eu fosse inaugurá-la.
Antes, uma visita ao lugar. Refeitório, oficina, ateliê, algumas celas com
berços para os filhos – várias presas tinham crianças pequenas, que até certa
idade poderiam ficar com a mãe – e a modesta biblioteca me pareceram normais.
Havia setores onde não pude entrar. Imaginei que seriam as solitárias. Não
acredito que fossem o chiqueiro imundo de presídios que conheço via imprensa e
outros relatos, mais uma prova de que o ser humano tem um lado sombrio
preocupante, pois aquilo não é decidido e administrado por psicopatas, mas por
pessoas no cumprimento da lei (as perguntas seriam: que pessoas e que
leis?).
Vendo minha
emoção, minha acompanhante dizia: "Não se impressione demais, aquela vovozinha
desdentada matou os três filhinhos da amante do marido. Aquela moça com cara de
anjo esfaqueou e mutilou o marido, que a traía". Mas a maioria dos casos, ela me
disse, era de "crimes do coração". Mulheres de todas as idades estavam ali em
lugar de seu companheiro: numa batida policial, o traficante botara a droga
embaixo do travesseiro, nas roupas dela ou do bebê, e fugira. Apanhada, a pobre
fora para a prisão no lugar dele, e em geral elas aceitavam tudo sem o
acusar.
No fim da
visita, hora de inaugurar a biblioteca, descerrando a placa que me deixaria
presente ali definitivamente. Fiquei aflita. O que dizer àquelas mulheres,
algumas jovenzinhas, outras já envelhecidas, olhos magoados de criança surrada
ou duros como punhais? Eu não havia preparado nada. Não dou conferências.
Converso com as pessoas, divido com elas minha curiosidade ou reflexões. Ali
fiquei insegura, me senti pequena, quase miserável – tudo o que eu dissesse
estaria errado. Logo eu voltaria para as ruas, para minha casa, para minha
família. Elas ficariam lá, justa ou injustamente, por alguns anos, muitos anos,
a vida toda.
Entendi que a
única saída era a sinceridade: disse-lhes sem rodeios que estava me sentindo
mal, que não tinha palavras, que me incomodava a liberdade de sair em seguida,
enquanto elas ficariam. Não me importavam, ali, nem justiça nem injustiça.
Importava o que poderia lhes dizer de pessoa para pessoa. Lembrei, então, a
frase de meu pai para alguém que o visitava quando eu era mocinha, e que me foi
relatada anos depois. Estendendo a mão para as fileiras de livros em suas
paredes, meu pai apenas disse: "Estes são os meus amigos". Pois para elas, ali
prisioneiras, os livros também poderiam ser conforto e distração. Porta e janela
para o mundo. Aula de psicologia, de história, de qualquer matéria. Momento de
beleza. Hora de chorar. Ocasião de abrir os olhos para qualquer coisa que
ajudasse a diminuir a dor e dar esperança. Possibilidade de conhecimento de si,
dos outros, de tudo. Entre as modestas prateleiras, estava algo que ninguém
poderia lhes tirar: a liberdade de pensar e de sentir, a liberdade de ser
gente.
Recordei
aquele episódio lendo outro dia notícias sobre a moça presa entre dezenas de
homens: ser menor de idade era um detalhe, pois mulher alguma, dos 8 aos 80,
pessoa alguma, homem, mulher, adolescente ou criança, pode ser tratada como um
animal. Aliás, corrijo: animal algum pode ser jogado no lixo, em uma cela
imunda, apinhada de seres desesperados, enquanto lá fora, nos tribunais e nas
cortes, se pronunciam em tom solene palavras pernósticas e frases complicadas
sobre justiça, direito e lei.
Enquanto
houver uma cela com quarenta homens ou mulheres quando lá caberiam dez,
com 100 quando caberiam quarenta, enquanto houver pátios sujos
de sangue, urina e fezes, enquanto houver tortura, maus-tratos e
injustiças que gritam aos céus, não teremos direito de falar em lei e
direito neste país. Seremos todos, direta ou indiretamente,
malfeitores.
Lya Luf-
Escritora