Considerações sobre a Tortura no Brasil

ONG Pacto Social & Carcerário São Paulo


Considerações sobre a Tortura no Brasil .

Com a proximidade da data 26 junho – “Dia Internacional de apoio às vítimas da tortura” – vemos como relevante, em um breve ensaio, analisarmos os aspectos desta prática, levando-se em consideração o Brasil , com a finalidade de observarmos tal situação em realidades discrepantes.

A tortura, uma prática que gostaríamos muito de considerar abolida, está ainda presente em nossos dias, muito embora seja terminantemente proibida pelas convenções internacionais e em muitos ordenamentos jurídicos. O ato de torturar vem sendo realizado entre as esferas do poder público de diversos países como um instrumento para obtenção de confissão de crimes, ou simplesmente para punir o criminoso por seus atos. A proibição absoluta da tortura tem como pilar principal a Declaração Universal dos Direitos do Homem”[1] promulgada pela ONU[2] em 1948. Esta declaração institui, em seu artigo 5.°, que “ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. A declaração “contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” de 1984 trata da questão mais detalhadamente: define a tortura e estabelece que os Estados não podem tolerar esta prática. Estes devem tomar medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de qualquer outra natureza para impedir a tortura dentro de sua jurisdição. Estas podem ser entendidas como o treinamento de funcionários públicos ligados ao poder de polícia e à tutela de pessoas privadas de liberdade, a confecção de leis que criminalizem a tortura, assim como, o controle dos métodos de interrogatório e o tratamento dispensados às pessoas sob tutela do Estado.

A proibição da tortura nos sistemas jurídicos brasileiro.
A vedação da tortura foi inserida na Constituição Federal brasileira de 1988, isto significa, que esta deve ser observada por todos os cidadãos e autoridades de direito público ou privado. O artigo 5.° da Constituição brasileira estabelece: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e também que a lei considera a tortura um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. O crime de tortura, porém, somente foi descrito em 1997 com o advento da lei n.° 9455. Segundo esta lei, a tortura consiste no constrangimento capaz de causar a alguém sofrimento físico ou mental com o emprego de violência ou grave ameaça com a finalidade de obter alguma informação, declaração ou confissão desta ou de terceira pessoa, para provocar uma ação ou omissão de natureza criminosa, ou em razão de discriminação racial ou religiosa, assim como agir desta mesma forma com a finalidade de castigo ou como medida de caráter preventivo contra pessoa que estiver sob a guarda, poder ou autoridade do agente, o torturador[3]. O crime de tortura não está ligado a um agente específico, mas em grande parte é cometido por funcionários dos órgãos públicos ligados ao poder de polícia. Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro prever a garantia dos direitos humanos, a luta pela observância da inviolabilidade da vida humana no Brasil nunca atingiu um ponto que pudéssemos considerar satisfatório e equilibrado. Este país é marcado desde seu “descobrimento” pela inobservância da dignidade do ser humano por suas instituições, principalmente, as policiais. Por isso, a atuação dos movimentos sociais é fundamental para uma possível melhora desta conjuntura.
Na Europa, de acordo com a Convenção Européia de Direitos Humanos, a tortura não deve, de forma alguma, ser permitida, mesmo em caso de guerras ou estado de emergência. Esta norma resulta da proibição da tortura contida nas convenções da ONU acima citadas. A Alemanha, como Estado integrante da Comunidade Européia, deve orientar-se pelos princípios instituídos pela mesma, que proíbem absolutamente a tortura. A Constituição da República Parlamentarista Alemã prevê em seu artigo 1.° que “a dignidade humana é inviolável”. O artigo 104 da mesma lei determina que pessoas presas não podem ser, tanto mental quanto fisicamente, maltratadas”. Nestes artigos se baseiam a proibição absoluta da tortura. Lei específica que defina este crime inexiste neste país. Casos de tortura são enquadrados no Código Penal alemão como crimes de lesão corporal e constrangimento. A Alemanha passou por uma profunda reformulação de valores sociais e de justiça após a II Guerra Mundial. A situação da garantia dos direitos humanos estaria, de certa forma, estabilizada diante de todas as conquistas alcançadas. Contudo, percebe-se que, mesmo quando seriam esperados os conseguintes avanços sociais, é possível surpreender-se com tendências reacionárias, como a da aplicação legal da tortura em alguns casos específicos, que abordaremos à frente. Por isso, também nos países considerados desenvolvidos, a presença e atuação dos movimentos sociais seria muito importante, para que se possa combater certas tendências retrógradas, que ameaçam não somente a região onde estas se originam, como também e, sobretudo, toda a comunidade internacional, principalmente onde os valores de justiça e igualdade social não estão tão solidificados.
Interrogatório público sob tortura no século XVII - Fonte: http://de.wikipedia.org/wiki/FolterBreves considerações históricas
A prática de tortura é conhecida há muito tempo na história da humanidade. Os Tribunais da Inquisição[4], por exemplo, a aplicavam com a finalidade de unificar a fé cristã através do combate aos hereges. Devido à fusão entre Estado e Igreja nesta época, tais procedimentos serviram mais aos interesses políticos do que aos “celestes” e se tornou uma forma de estabelecer o poder dos governantes. Desta forma, a tortura passou a ser um meio de obter-se a confissão dos “criminosos”, que assim teriam condições de “salvar suas almas”, já que com esta estaria suposto o arrependimento do crime. Nos processos da Inquisição a tortura também se caracterizava pela publicidade[5], o que facilitou, através da intimidação, o asseguramento do poder dos governantes. Em 1740 a tortura foi abolida na Prússia, que foi seguida por vários Estados europeus, mas não por todos. O jurista italiano Pietro Verri, iluminista do séc. XVIII, aterrorizado com a permanência de prática tão horrível em seu país, justamente quando a Europa se deixava levar pelos “ventos da razão”, se posiciona categoricamente em sua obra “Observações sobre a Tortura”. Ele afirma que por meio da dor um ser humano é capaz de confessar o que não fez para se livrar do sofrimento: “um ‘duro‘ verdadeiramente culpado pode ter grande resistência à tortura enquanto um inocente mais sensível confessa o que lhe for exigido se for submetido ao menor suplício”. (citado em DALLARI:2006) O século XX foi marcado por regimes autoritários onde a tortura foi amplamente empregada. Após a criação da ONU em 1945 foram estabelecidos critérios para a observância dos direitos humanos, dentre eles o devido processo legal e a proibição da tortura. Como fonte e fundamento para a proibição absoluta da tortura temos as convenções da ONU de 1975[6] e 1984[7]: ambas definem o crime de tortura e estabelecem medidas visando o seu combate. Estas normas deveriam ser introduzidas no ordenamento jurídico nacional e serem cumpridas pelas autoridades públicas, no entanto, conclui-se que, em países como o Brasil, muito embora conste sua vedação na Constituição Federal e em lei específica, a tortura tem sido uma prática ainda comum, porém latente. E na Alemanha há, atualmente, uma tendência de relativizar-se a prática da tortura, como por exemplo, em caso de perigo “terrorista” ou seqüestro.

Prática da tortura no Brasil

Lamentavelmente, a tortura não é uma prática usada somente durante períodos de exceção, como o Estado Novo e a ditadura Militar de 1964-85[8]. Em tais momentos históricos houve a supressão expressa das garantias e direitos fundamentais do cidadão e a tortura era aplicada amplamente contra os que se opunham a estes regimes autoritários.
Entretanto, hoje em dia, em pleno Estado de Direito, a tortura continua sendo praticada, principalmente pela polícia. De acordo com o Relatório Anual da Anistia Internacional de 2006, parcelas mais pobres da população brasileira têm sido continuamente vítimas de tratamentos classificados como tortura. A ausência de um maior envolvimento da sociedade civil no combate à tortura fortaleceria a atitute opressiva de autoridades policiais no desempenho de suas funções, o que favoreceria a continuidade da utilização do emprego de tratamentos desumanos e cruéis à cidadãos que se encontrem em regime de pena privativa de liberdade e no ato de detenções. As práticas de tortura, “desde que aplicadas aos ‘diferentes’, ‘marginais’ de todos os tipos, (...) são em realidade aceitas, embora, não defendidas publicamente”.(cfe. COIMBRA:2000) Denúncias de movimentos sociais descrevem condutas ilegais contra cidadãos em bairros de baixa renda e, principalmente, contra pessoas sob tutela do Estado, como por exemplo, adolescentes da Febem[9] de São Paulo, contradizendo as normas jurídicas e o propósito da instituição. Segundo o relatório “Destruindo o Futuro: Tortura na Febem” os internos são “alijados de seus direitos básicos e fundamentais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, (...) está em curso uma rotina de desrespeito, humilhação e tortura”. Esta é uma situação que não quer ser vista pela sociedade e que é aceita e permitida pelo poder público.
Tão grave quanto o descaso do poder público e a falta de mobilização da sociedade civil é a tendência à tolerância da tortura observada na jurisprudência de alguns tribunais brasileiros. Poder-se-ia dizer que, apesar da vedação expressa da tortura no nosso ordenamento jurídico, esta parece estar sendo contraditoriamente pouco a pouco institucionalizada. Um juiz auditor militar no Rio de Janeiro “admitiu que é possível o uso ‘do rigor necessário’ para a descoberta de um delito” (GOMES:2006). A confissão como prova de um crime, mesmo que haja indícios de maus-tratos, tem sido admitida pelos tribunais brasileiros. Neste caso, há mais de uma contradição rondando a questão, pois, além do crime de tortura em si, esta tendência contradiz os princípios do devido processo legal, ao se admitir como constatação de um crime uma prova forjada através de meios ilícitos. Como pode-se constatar, a utilização da tortura no Brasil tem origem, na maioria dos casos, na esfera das autoridades públicas policiais e contando ainda com a corroboração do Poder Judiciário.
Esta tendência se contrapõe a avanços conquistados em relação aos direitos humanos universais e à função do Judiciário, qual seja a de garantir o cumprimento da lei e harmonizar os conflitos. O estabelecimento de critérios subjetivos para a condução de um procedimento penal no momento do interrogatório pode levar a atos indiscriminados e arbitrários, pois não há uma definição clara, por exemplo, do que seja “rigor necessário”. E na falta de um critério explícito que atenda às regras de direitos humanos, o agente poderá estabelecer tal “rigor” da forma como lhe convém ser o “necessário” como método interrogatório. Todo ato incisivo que possa vir a atingir a integridade física e psicológica de um ser humano será considerado tortura: “a tortura é sempre, mesmo que esta seja regulamentada, de uma forma extrema, o exercício de poder do torturador ou de seu mandatário sobre o torturado. Através disso a autoridade é produzida, encenada e mantida”. (MARX, 2004:5) Esta postura é contraditória ao Estado Democrático e de Direito, que se baseia também, entre outros princípios, na inviolabilidade da dignidade humana de acordo com o Art 1.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas.